Texto da Curadoria para a exposição “Memórias do Feminino“

Memórias do feminino

Os desenhos e pinturas de Cida Carneiro estabelecem costuras de tempos e espaços deslocados entre passados e presentes. Portanto, um olhar anacrônico, que se pode entrever na temporalidade do tempo presente, mas com um olhar para as origens que não cessam de repetir. Desta maneira, a obra contemporânea da artista estabelece no feminino o suporte para inscrever vivências, memórias e cotidianos, assim assimilando o modus operandi de disciplinas e meios de comunicação como moda, cinema, fotografia, pintura, artes cênicas, música e até mesmo dispositivos contemporâneos como celulares. Sendo assim, suas pinturas não escapam ao que Nicolas Bourriaud chamou de pós-produção, como a “anexação ao mundo da arte de formas até então ignoradas ou desprezadas.”¹

Não obstante, a produção estética de Cida Carneiro migra de seu universo particular e afetivo para a sensibilidade coletiva ao inscrever novas práticas artísticas. A adoção de selfies femininas, mote para algumas de suas composições, talvez seja a maior demonstração do fazer relacionar a pintura autoral “com modelos de socialidade da esfera inter-humana, a internet. ”²

Nos trabalhos apresentados pela mostra também são constantes as recorrências à moda e seus vocabulários como acessórios, vestuários próprios, entre outros. E referir à moda introduz no tempo de sua pintura-desenho uma peculiar descontinuidade, que o divide segundo a sua atualidade ou inatualidade, o seu estar ou o seu não-estar-mais-na-moda.³ Botas, coroas, minissaias, crochês, silks, tatuagens e muitos outros argumentos femininos, levam suas personagens às performances do universo glamourizado, tornando-as princesas anacrônicas, sem destituírem-nas do mais emergente presente. Portanto, enquanto pinta, a artista também se faz estilista e fotógrafa, ora afirmando costumes, ora negando-os em demonstrações de rebeldia e afirmação sexual. E embora seu repertório seja muito heterogêneo, ele não nega referências às formas já produzidas 4, ao contrário, ele reclama-as ao tempo presente.

Contudo, não pensemos que suas pinturas e desenhos utilizem apenas imagens para produzir imagens. Ao utilizar códigos de várias culturas a artista recorre à performances presentes na música e na literatura. O rock, o pop e poemas da escritora goiana Cora Coralina também se fazem presentes nos trabalhos exibidos na mostra.

O relacionar com o passado, ao revisar a poetisa, levou Cida Carneiro a retomar o livro “Poemas dos becos de Goiás e estórias mais”, sob o título “Estória do aparelho azul-pombinho”. A partir desse poema a artista retorna as referências do imaginário e da sexualidade reprimida ao identificar-se com a história da princesinha Lui e seu namorado plebeu, cujo romance era rejeitado por todos.

Memórias do Feminino, mostra individual da Artista, exibe trabalhos cuja poética pictórica reivindica sua contemporaneidade, pois está constituída na representação do feminino em diferentes espaços e tempos, mas também no espaço de consumo, com a produção e reprodução de modelos de mulheres. Meigas, doces, caricatas, sensuais, sexuais, sutis, tímidas, fortes, frágeis, poderosas, anciãs e mocinhas, essas personagens são lançadas a passagens de períodos que não estão hierarquizados, mas constituem sobreposições das condições do feminino em composições diversas.

Cristiano Lemes

 

¹ BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte programa o mundo contemporâneo. Ed. Martins Fontes – São Paulo – SP, 2009. Pp. 8.
² BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte programa o mundo contemporâneo. Ed. Martins Fontes – São Paulo – SP, 2009. Pp. 12.
³ AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo. Ed. Argos, Chapecó – SC, 2009. Pp. 66
4 BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte programa o mundo contemporâneo. Ed. Martins Fontes – São Paulo – SP, 2009. Pp. 12.